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A Fragilização da Formação de Condutores e o Risco para a Segurança Viária no Brasil

Por Alisson Maia de Freitas

O Ministério dos Transportes discute, atualmente, uma proposta que altera profundamente o modelo brasileiro de formação de condutores. Entre as mudanças previstas estão o fim da obrigatoriedade das aulas teóricas e práticas nas autoescolas, a substituição do curso
presencial por videoaulas e e-books oferecidos pela Senatran, e a possibilidade de realização direta da prova teórica sem qualquer carga horária mínima. Na prática, o Brasil caminharia para um sistema em que “faz aula quem quer” — e esse é o ponto crítico: a formação deixaria de ser uma política pública universal e passaria a depender da capacidade individual de cada candidato, o que aprofunda desigualdades e coloca vidas em risco.

As autoescolas brasileiras, atualmente, seguem diretrizes pedagógicas mínimas estabelecidas pelo CTB e pela Resolução 789 do Contran, que determinam carga horária teórica, prática supervisionada, aula noturna, conteúdos de direção defensiva, primeiros socorros, convívio
social e atendimento ao público vulnerável. Esse conjunto de salvaguardas não é burocrático; é resultado de décadas de estudos nacionais e internacionais que apontam que motoristas iniciantes são o grupo mais propenso a erros críticos, e que esses erros diminuem de forma
significativa quando há acompanhamento presencial especializado.

No Brasil existem milhões de pessoas com TDAH, TEA em nível leve, dificuldades de assimilação de conteúdo, problemas de atenção sustentada e barreiras cognitivas diversas. A legislação brasileira assegura a essas pessoas acesso pedagógico em igualdade de condições
— mas isso não significa simplesmente “disponibilizar o curso”. Significa garantir que ele seja efetivamente acessível.

Migrar para um sistema exclusivamente digital, baseado em leitura de e-book e videoaulas sem mediação, ignora completamente a necessidade de acompanhamento especializado para esses grupos. Para muitos desses brasileiros, ler um material de 200 páginas ou assistir vídeos sem supervisão não garante aprendizagem real, e muito menos preparo para enfrentar um ambiente tão complexo quanto o trânsito. Sem orientação presencial, sem professor para mediar dúvidas, sem metodologia adequada, o resultado é exclusão mascarada de “modernização”.

Os defensores da proposta argumentam que retirar a obrigatoriedade das aulas reduziria custos. A realidade econômica, porém, mostra o contrário.

Hoje, a hora-aula prática em uma autoescola custa em média R$ 50 porque existe escala — todos os candidatos realizam as 20 aulas obrigatórias. Se essa escala deixa de existir, o valor caminha para o que já é praticado no mercado avulso por instrutores particulares: R$ 120 a R$ 180 por aula.

Além disso, sem aulas obrigatórias, muitos candidatos chegarão despreparados à prova prática. O resultado direto será: mais reprovações; mais taxas de reaplicação; mais gastos com aulas avulsas;maior dificuldade para quem depende de transporte público ou não tem carro próprio.

Outro problema: o uso de veículo no dia do exame.

Se o Estado não exige que o candidato aprenda em veículo de autoescola, quem não possui carro terá de alugar um veículo equipado com duplo comando e seguro específico, algo que, naturalmente, terá custo elevado — possivelmente superior ao valor de um pacote completo
de aulas no modelo atual.

Ou seja: o processo fica mais caro justamente para os mais pobres.

O Brasil registra cerca de 35 mil mortes por ano no trânsito e mais de 300 mil feridos graves, que sobrecarregam o SUS, o INSS e toda a rede de saúde. A estimativa de custo direto e indireto dos acidentes ultrapassa R$ 50 bilhões anuais.

Em países que adotaram modelos de flexibilização sem supervisão adequada, houve elevação significativa dos sinistros envolvendo motoristas iniciantes. Por isso, as nações que mais reduziram mortes evoluíram para modelos de maior supervisão, não de menor.

O conceito de GDL (O GDL é um sistema baseado em etapas, que permite ao candidato ganhar experiência progressivamente, com supervisão, restrições estratégicas e aumento gradual de autonomia.), baseia-se exatamente em mais treinamento, mais prática,
mais acompanhamento, mais etapas. O Brasil caminha na direção oposta.

Ao retirar salvaguardas pedagógicas, o Estado deixa de garantir tratamento isonômico aos cidadãos. Os candidatos passam a competir em condições completamente diferentes:

– quem tem família estruturada, carro em casa e apoio pedagógico informal terá mais facilidade;
– quem depende totalmente da estrutura pública ou das autoescolas enfrentará barreiras maiores e custos mais altos;
– pessoas com TDAH/TEA/déficits de atenção serão penalizadas pelo simples fato de precisarem de metodologia adaptada.

Isso produz um trânsito menos imparcial, com mais riscos e mais desigualdade, contrariando os princípios do CTB, da LBI e das políticas de segurança viária.

Atualmente, os DETRANs fiscalizam 364 autoescolas no Ceará e cerca de 15 mil no Brasil, todas com CNPJ, sede fixa, estrutura pedagógica, certidões fiscais e veículos vistoriados.

Substituir esse modelo por dezenas de milhares de prestadores autônomos e plataformas sem transparência tornará a fiscalização praticamente inviável.

O caminho responsável para modernizar a formação de condutores envolve:
– manter obrigatoriedade das aulas práticas com supervisão profissional;
– manter carga horária mínima teórica, podendo modernizar parte do conteúdo para modelo remoto com acessibilidade garantida;
– aplicar tecnologia (telemetria, gravação das aulas, plataformas com acessibilidade);
– aprimorar a prova prática e teórica;
– ampliar programas sociais como CNH Social;
– fortalecer DETRANs.

A discussão sobre formação de condutores não pode ser reduzida a “baratear a CNH”. O trânsito brasileiro é uma das maiores causas de morte de jovens no país. Não existe país seguro com formação improvisada. Não existe inclusão com e-book obrigatório. Não existe
igualdade quando cada um aprende “como der”.

A obrigatoriedade das aulas não é um entrave: é uma política pública de proteção à vida.
Modernizar, sim. Precarizar, nunca.

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